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Texto curatorial 


 

AMAZONA, ou a dança das resistências

 

Na mitologia grega, amazonas eram mulheres guerreiras que, segundo algumas lendas, cortavam os próprios seios para melhor manejar arcos e flechas. Um processo violento que visava garantir sua própria segurança, já que a presença e localização dos seios limitaria os movimentos, dificultando sua destreza e precisão no uso desses objetos. Ou seja, a automutilação como estratégia de defesa.

 

Se pensarmos na nudez ao longa da História da Arte, representações de seios permeiam o imaginário e o senso comum na identificação de distintos tipos de corpos. Encontraremos nos seios um símbolo da condição feminina, desempenhando um papel relevante tanto na sexualidade quanto na maternidade. De matriz da vida à associação com o pecado carnal, contemporaneamente os seios tem sido vistos como indicativo de vaidade e sensualidade.

 

A obra “Amazona, ou a dança das resistências” (2022), que dá título a esta exposição, nasce a partir do mito das mulheres guerreiras. 

 

Após um episódio de violência física sofrida no transporte público, Andressa Cantergiani passou a pensar sobre sua fragilidade e falta de reação diante do fato e, inevitavelmente, a conjecturar outros desfechos caso ela tivesse se defendido, caso ela soubesse como se defender. A partir disso, a artista investiga diferentes técnicas de autodefesa, incluindo aí karatê, judô, kravmagá e kickboxing. Compreendendo a situação experienciada não como um trauma individual, mas como uma situação corriqueira fruto de uma sociedade estruturalmente violenta, Cantergiani organiza uma série de workshops para ensinar movimentos de defesa a corpos socialmente vulneráveis. 

 

Em paralelo, a artista lança um convite para doações de movimentos de autodefesa. Usando tecnologia de motion caption, ela capta e registra tais movimentos, que posteriormente são usados na coreografia do vídeo “Amazona". Apresentando sete performers, sete corpos distintos, de distintas origens, o vídeo – exposto na projeção ao fundo da sala expositiva – transforma os golpes de luta em dança, conferindo fluidez aos movimentos e liberdade àqueles corpos. Da restrição e do medo, vêm a força e a reação. 

 

Como parte do processo de pesquisa que integra essa obra, viabilizada por meio de bolsa Fellowship Weltöffenes Berlin 2022 e NPN/SttepingOut/Joint Adventures Fund 2022, realizada ao longo de um ano de residência na cidade alemã, expomos na lateral esquerda da galeria dois vídeos-base das capturas de movimentos doados e um vídeo com cenas variadas do processo de desenvolvimento da coreografia, ensaios e captação das imagens para o vídeo, mostrando bastidores do processo da obra. Também são apresentados na exposição dois conjuntos de sacos e luvas de boxe, disponíveis para manipulação dos visitantes, que também serão ativados com a realização de oficinas de defesa pessoal, contanto com a presença da instrutora especializada e da artista.

 

A captação dos movimentos doados reverbera no outro conjunto de trabalhos presentes nesta exposição: "A-Zone Cyborg” (2022/23), cujas ramificações ocupam toda a lateral direita do espaço expositivo.

 

“A-Zone Cyborg” dialoga com o “Manifesto Ciborgue”, proposto por Donna Haraway em 1985. Para esta autora, todo ciborgue seria um híbrido entre organismo natural e máquina, experiência vivida e ficção, sendo a fronteira entre ambas esferas apenas uma ilusão ótica. Jogando com esse limiar, Cantergiani constrói um universo digital paralelo e distópico no qual variados seres ciborgues coabitam: avatares que existem em fluxo, no espaço e no tempo, corporificados e ativados pelo conjunto de movimentos reais de autodefesa colecionados pela artista. Assumem características arquetípicas, cada um deles possui um papel específico nesse universo ficcional. Da Big Mother, ou a "Grande Mãe” (2023), todos os outros avatares são criados: “Cura”, “Street Fighter” e “Mito Invertido”. Na mostra, eles são expostos em videoperformances 3D, lado a lado, culminando no vídeo da Grande Mãe, no qual o universo ficcional criado pela artista pode ser melhor apreendido em sua simbologia e visualidade.

 

Assim, espelhado no espaço expositivo, frente à frente, ocorre o encontro entre o real e o virtual, na obra de Cantergiani e na mostra. Os movimentos orgânicos e fluidos dos avatares são rebatimentos diretos dos corpos – organismos vivos – que lutam frente a um fundo infinito de chroma key. Híbridos ciborgues que fazem da dança uma estratégia de defesa, mas também de autoafirmação no mundo. Um contra-ataque. Uma contradança na qual identidades múltiplas e fugidias flertam com a possibilidade de redistribuição da violência cotidiana, como nos alerta Jota Mombaça, em “Notas estratégicas quanto aos usos políticos do conceito de lugar de fala” (2017). 

 

Ao fundo, na sala à direita, nos deparamos com a escultura-avatar “Big Momma-Mona” (2024). Feita de filamento PLA biodegradável a partir de processos de impressão 3D, a obra é constituída por 17 diferentes partes do corpo da Grande Mãe, numa escala real que emula o corpo da própria artista. Desmembrada no início da mostra, ela é montada por Cantergiani em uma ação performática durante a abertura, na qual os movimentos coletados desempenham, novamente, papel central. Com as peças unidas, fica evidente a quantidade de seios que envolvem este corpo, ocupando grande parte da superfície da escultura. Seios que, ao invés de mutilados em busca de uma forma segura de estar no mundo, são abundantes. Seios que, ressignificados, passam a simbolizar resistência.


 

Bruna Fetter

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