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O AVESSO DO AVESSO: CRITICA INSTITUCIONAL COMISSIONADA

 

 

REVERSE OF THE REVERSE: COMMISSIONED INSTITUCIONAL CRITIQUE

 

Bruna Fetter /UFRGS

 

 

 

 

 

RESUMO

O presente artigo analisa a ação-instalativa Avesso, dos artistas Andressa Cantergiani e Maurício Ianês, enquanto projeto selecionado no primeiro edital de exposições temporárias da Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, Brasil. Considerando o histórico recente de crise da instituição e tendo como referencial teórico problematizações em torno de questões da crítica institucional, participação/colaboração e relações de poder no mundo da arte, este artigo se propõe a percorrer questões tanto de ordem poética quanto institucional geradas a partir da execução do projeto, buscando construir algumas pontes entre as intenções dos artistas e a resposta do público, apontando contradições imanentes à situação expositiva e compreendendo as - ainda recentes - reverberações do trabalho no meio artístico gaúcho e nacional.

 

PALAVRAS-CHAVE

Crítica institucional; crise financeira; Fundação Iberê Camargo; ação-instalativa; Avesso.

 

 

ABSTRACT

This article analyzes the installative-action Reverse, by artists Andressa Cantergiani and Maurício Ianês, as a project selected in the first open call of temporary exhibitions of the Iberê Camargo Foundation, in Porto Alegre, Brazil. Considering its recent history of institutional crisis and having issues of institutional critique, participation / collaboration and power relations in the world of art as theoretical references and background, this article proposes to explore both poetic and institutional questions generated from the execution of the project, seeking to build some bridges between the intentions of the artists and the response of the public, pointing out contradictions immanent to the expositive situation and understanding - the still recent - reverberations of the work in the local and national artistic environment.

 

KEYWORDS

Institutional critique; financial crisis; Iberê Camargo Foundation; installative-action; reverse.

 

 

 

 

No dia 15 de março de 2018 a Fundação Iberê Camargo (FIC) divulgou o resultado do primeiro edital[1] realizado pela instituição para abrigar exposições temporárias. Nele foi contemplado a proposição artística intitulada Avesso, dos artistas Andressa Cantergiani (Caxias do Sul, 1980)[2] e Maurício Ianês (Santos, 1973)[3], sobre a qual irei discorrer neste artigo. Avesso, denominada pelos artistas como uma ação-instalativa, nasceu a partir da reflexão a respeito do recente histórico de crise da instituição e propôs, entre outras questões, ocupar todo o 4o andar do prédio projetado por Álvaro Siza com os descartes (lixo) gerados e acumulados pela Fundação ao longo das seis semanas que contemplaram sua duração. A proposta também previa que ambos artistas, performers, estivessem presentes no espaço expositivo destinado ao projeto durante seus seis finais de semana, recebendo o público, conversando com ele e incentivando sua ampla participação (Imagem 1).

 

Imagem 1: Vista parcial da ação-instalativa Avesso (2018), Fundação Iberê Camargo.

No primeiro plano à esquerda, a artista Andressa Cantergiani caminha pela instalação[4].

 

Nesse sentido - e tendo como referencial teórico problematizações de discussões em torno da crítica institucional, participação/colaboração e relações de poder no mundo da arte -, este artigo se propõe a percorrer questões tanto de ordem poética quanto institucional geradas a partir da execução do projeto, buscando construir algumas pontes entre as intenções dos artistas e a resposta do público, ressaltando contradições imanentes à situação expositiva da proposta e compreendendo as - ainda recentes - repercussões do trabalho no meio artístico gaúcho e nacional.

Para tanto, dividi o texto em três atos: 1) o contexto de crise vivenciado pela FIC desde 2016 e a virada institucional que daí adveio; 2) a ação em si, suas intenções e materialização no espaço expositivo institucional e 3) as tensões e negociações que se estabeleceram a partir do momento em que uma obra de viés (auto) crítico foi comissionada pela instituição.

 

Ato I: crise e virada institucional

Em 23 de agosto de 2016 a Fundação Iberê Camargo anunciou oficialmente algo que várias pessoas do meio artístico já vinham tomando conhecimento de maneira informal: sobre a crise financeira que se manifestava desde o ano anterior e que atingiu contornos alarmantes naquele momento. A instituição tomou uma série de medidas drásticas para lidar com a redução de investimento por parte dos patrocinadores tradicionais, como a demissão de mais de 50 funcionários entre profissionais das equipes de produção, administrativa e do projeto educativo (FORTUNA, 2016). No entanto, a medida mais impactante para a comunidade local foi o fechamento parcial da instituição que, desde então, tem aberto ao público apenas durante dois dias da semana (MARTI, 2016), inicialmente sextas-feiras e sábados e, atualmente, sábados e domingos.

Tal situação de crise - representativa do momento social, político e econômico que vem ecoando no Brasil ao menos desde as manifestações de junho de 2013 e que se agravou em função do impeachment da presidenta Dilma Roussef em abril de 2016 - vem conduzindo a FIC a uma virada institucional. Em um esforço para lidar com este cenário de dificuldades, Justo Werlang[5] assumiu como diretor-presidente da FIC em dezembro de 2016. Seu retorno à instituição trouxe uma série de reestruturações profundas na maneira de conduzi-la. Partindo de um estudo de reposicionamento contratado junto a uma consultoria, foi verificada a necessidade de oferecer uma programação mais inclusiva e participativa. Nas palavras de Werlang:

Uma programação que não se detenha exclusivamente na área de artes visuais, mas que atenda também a área de música, literatura, teatro, dança, cinema. A ideia é fazer com que a instituição consiga trabalhar outros públicos. Públicos jovens, por exemplo. A música não vai ser clássica. Também vai ter, mas a ideia é que se tenha no fim de tarde uma música no pôr do sol. Para chamar outro tipo de gente (WERLANG apud GOMES, 2017, sem página).

Assim, o reposicionamento almejado por Werlang atingiu instâncias curatoriais mais profundos, resultando em um redirecionamento dos rumos da programação e uma abertura a públicos que até então não costumavam frequentar a FIC.

A contratação de Bernardo José de Souza[6] como curador-residente da instituição, anunciado em março de 2017, e o perfil da programação por ele desenhada desde então são indícios dos caminhos ambicionados pela instituição neste novo momento. Se, desde a inauguração do prédio, em maio de 2008, a FIC focou sua atuação em projetos expositivos de grande porte, trazendo à cena porto-alegrense mostras de renomados artistas nacionais, como Waltercio Caldas, Sérgio Camargo, Regina Silveira, Nuno Ramos; e internacionais, como Leon Ferrari, William Kentridge e uma grande exposição de trabalhos do Grupo Zero, o foco dos projetos foi alterado sob a nova direção artística, buscando-se uma perspectiva “menos elitista”, segundo Werlang.

Bernardo José de Souza redimensionou o tamanho e foco dos projetos expositivos, criou projetos de música, cinema e debates sobre os mais variados assuntos, como é o caso do ciclo de encontros “Ódio sem fim”[7], destinado a fomentar a discussão em torno da polarização ideológica que vem marcando a vida política no país e a investigar ataques de ódio disseminadas pelas redes sociais. Outra ação proposta pelo curador foi o lançamento, em janeiro de 2018, de um edital para exposições temporárias - tipo de abertura e interlocução com o meio artístico inéditas no histórico da Fundação. O edital anunciou a disposição da FIC em conceder até dois prêmios, no valor de R$ 10.000,00 cada, para proposições artísticas que apresentassem “profundidade conceitual, contemporaneidade do discurso, excelência formal e coerência entre proposta e currículos, conforme livre apreciação da Comissão Julgadora” (EDITAL FIC, 2018, sem página)[8]. É no contexto deste edital que Avesso se fez possível (Imagem 2).

 

 

Imagem 2: Vista parcial da ação-instalativa Avesso (2018), Fundação Iberê Camargo. Detalhe “Não entre!”, escrito pelo público em irônica alusão às proibições comuns a espaços expositivos.

 

Cabe ressaltar que a readequação da escala da programação não foi feita unicamente em função das ações de caráter mais contemporâneo propostas pelo novo curador, mas também pela falta de recursos para projetos que exijam maior investimento financeiro. Neste sentido, observo a realização do projeto Avesso na Fundação Iberê Camargo como uma brecha, uma oportunidade expositiva e vivencial proporcionada pelo ambiente de crise que jamais teria sido aventada caso a instituição não estivesse passando por adversidades financeiras.

Assim, tendo sido selecionado[9] pela curadora e pesquisadora Gabriela Motta, pelo artista visual Luiz Roque e por Comissão Técnica da Fundação Iberê Camargo dentre as 57 propostas submetidas, Avesso foi descrita no resultado oficial divulgado pela instituição como:

 

uma ocupação performática do prédio da instituição, buscando tornar visíveis as estruturas físicas e humanas do espaço. Contando com a presença dos artistas aos finais de semana, a ação-instalação contará com a participação do público, propondo um questionamento de como as relações são criadas dentro de um espaço artístico (RESULTADO EDITAL FIC, 2018, sem página)[10].

 

Ato II: virando a instituição do avesso

A obra, em atividade entre os finais de semana de 14 de abril a 03 de junho de 2018[11], propôs “virar do avesso” a instituição, gerando questionamentos sobre como se dão as relações “dentro de um espaço institucional artístico, ampliando e revelando as possibilidades de criação e distribuição do sensível de forma coletiva e transparente”[12].

 

Imagem 3: Vista parcial da ação-instalativa Avesso (2018), Fundação Iberê Camargo.

Detalhe à esquerda: mediadora assinando o registro de presenças, na parede ao fundo a inscrição

“O Iberê matou um cara” em fita isolante parcialmente coberta por pedaços de papelão.

 

Segundo Andressa Cantergiani e Maurício Ianês, a ação se desdobrou em quatro diferentes momentos, sendo eles: 1) a ocupação do espaço expositivo, criando diálogos com os visitantes e funcionários; 2) a coleta  de objetos não-perecíveis nas lixeiras e depósitos da instituição para construção, com a participação dos visitantes, de esculturas temporárias efêmeras que ocuparam o espaço expositivo; 3) a marcação com fita isolante dos corpos dos participantes e visitantes, segundo a  técnica de demarcação de silhuetas utilizada em perícias médico-legais científicas para marcar cadáveres ou corpos vivos em cenas de crime; e, por fim, 4) o registro da presença dos visitantes e funcionários da FIC nas paredes, criando uma espécie de livro-ponto das visitações (Imagem 3).

 

Imagem 4: Detalhe da parede com o registro de presença dos funcionários e

público da ação-instalativa Avesso (2018), Fundação Iberê Camargo.

 

Este conjunto de ações compôs o processo de ocupação do espaço, que foi sendo alterado diariamente conforme os resíduos da instituição e a participação do público visitante foram se acumulando, compondo uma crescente sobreposição de camadas (Imagem 4).

Pelo menos desde a década de 1960 observamos as diferentes modalidades de desmaterialização da obra de arte e uma migração das possibilidades de prática artística para âmbitos não institucionalizados, ou como diria Brian O’Doherty (2002) sobre a hegemonia do cubo branco, para ambientes menos sacralizados. Nesse contexto, a emergência de práticas de crítica institucional por artistas como Hans Haacke, Marcel Broodthaers, Daniel Buren e Michel Asher tornou-se icônica, sendo referência histórica obrigatória a todos que procuram questionar formas de interferência de instituições culturais no fazer artístico (BUCHLOCH, 1990).

Para contextualizar Avesso nessa discussão, me aproprio do artigo “Some notes on institutional critique”, de Simon Sheikh (2009), no qual o autor discorre sobre três diferentes ondas da crítica institucional. Para ele, a primeira onda teria ocorrido no fim dos anos 1960 e inicio dos 1970, quando as instituições artísticas - em especial os museus - eram o centro das práticas artísticas de caráter crítico (O’DOHERTY, 2002). A segunda onda, dos anos 1980, não apenas incorporou o papel do artista (sujeito-crítico) como institucionalizado, mas também institucionalizou investigações em outros espaços e práticas para além dos espaços consagrados de arte (FRASER, 2014; CRIMP, 2005). A terceira e atual onda seria uma convergência das duas anteriores, com a diferença de que, até então, a crítica institucional era conduzida por artistas e dirigida contra as instituições de arte. O que encontramos hoje, entanto, apresenta-se sob outra configuração.

Segundo Sheikh (2009), as atuais discussões da crítica institucional seriam propagadas predominantemente por curadores e diretores de instituição que, ao comissionarem e abrigarem dentro do ambiente institucional obras críticas aos atuais cânones artísticos e aos próprios limites institucionais, estariam buscando modificar as configurações da instituição para reforçar seu papel de legitimação dentro do sistema da arte, e não - como anteriormente proposto - questionar e reduzir seu poder de ação. Assim, Avesso estaria circunscrita nessa terceira onda, uma vez que foi selecionada em edital e premiada para que acontecesse na FIC. No entanto, há aí uma particularidade, pois Avesso não foi uma decisão interna e uma escolha estritamente institucional, mas sim um projeto externo submetido a uma seleção realizada por atores também externos à instituição.

Daí o subtítulo deste artigo: crítica institucional comissionada, ou seja, a compreensão de que Avesso é uma obra que, mesmo criticando a Fundação Iberê Camargo, foi por ela aprovada e viabilizada. Tal constatação pode nos levar a alguns questionamentos a respeito deste tipo de prática institucional, em geral, e sobre a FIC, em particular, como: a decisão a respeito da escolha do projeto foi refletida e deliberada dentro de uma virada institucional almejada? Estava a FIC ciente das repercussões que o projeto teria e preparada para lidar com elas? Qual o nível de tensão gerado pela efetiva ocupação do espaço expositivo pela ação-instalativa? Qual o grau de flexibilidade e maturidade institucional para conviver por seis semanas com críticas duras no seu próprio território? E afinal, o que a crise financeira tem a ver com tudo isso?

 

Ato III: o avesso do avesso

Levanto essas indagações por ter a impressão de uma não-intencionalidade por parte da FIC em fomentar ações de crítica institucional direcionadas a si mesma, especialmente dado o delicado momento financeiro vivido, no qual grande parte dos seus programas foi extinto ou temporariamente suspensos, o que ocasiona frustração do público e certo descrédito por parte do meio artístico em sua situação.

Instituições - de qualquer tipo - possuem uma tendência natural à autopreservação. Em instituições do mundo da arte isso não seria diferente. Digo isso para salientar que a terceira onda da crítica institucional, tal como apresentada por Sheikh, passa a existir desde o final do anos 1990 geralmente restrita a contextos particulares. Tais contextos costumam estar vinculados a curadores e instituições adeptos a práticas vinculadas à estética relacional (BOURRIAUD, 2009), ao Novo Institucionalismo[13] e a projetos efêmeros, como edições específicas de bienais (LIND, 2012). Ou seja, são associados a instituições que estão ativamente buscando ampliar os limites da reflexão e prática artísticas com base em preceitos de experimentação, atuação política e social. Mesmo não acreditando que essa seja a nova faceta almejada pela FIC, é fácil observar que a instituição ainda se encontra afetada e fragilizada pela crise financeira, transformando-se facilmente em alvo de críticas. Como fica evidenciado na pergunta “Cadê o dinheiro do educativo?” (Imagem 5) ou na frase “O Iberê matou um cara” (detalhe da Imagem 3), ambas manifestações anônimas coladas pelo público visitante em fita isolante preta nas paredes do espaço expositivo ainda nos primeiros finais de semana da ação e lá permanecendo até seu encerramento.

 

Imagem 5: Vista parcial da ação-instalativa Avesso (2018), Fundação Iberê Camargo.

Na parede, colada em fita isolante preta podemos ler a pergunta: “Cadê o dinheiro do educativo?”

 

Refletindo sobre essas questões, participei a convite dos artistas e da curadoria da FIC, no dia 03 de junho, de uma conversa pública ocorrida em meio à ação-instalativa. Sentados no chão, em banquinhos ou apoiados nas paredes - comportamento nunca antes permitido neste espaço expositivo -, cerca de 25 pessoas se reuniram imersos no lixo para discutir por quase duas horas sobre os processos da obra, seus significados, possibilidades simbólicas e poéticas. Tive a companhia não apenas da artista Andressa Cantergiani e da artista e professora Paola Zordan, ambas previstas para dividirem a atividade comigo, como também de Bernardo de Souza e Henrique Menezes, curador-residente e curador-assistente da FIC, respectivamente. Dentre os pontos debatidos, ficou claro que questões como participação ativa, colaboração e diluição da autoria, são centrais à proposta dos artistas. Da parte do público as perguntas se concentraram sobre as possíveis tensões vivenciadas entre os artistas e a instituição ao longo do processo da obra e as negociações realizadas para a efetivação do projeto. Destas, duas em especial parecem merecer atenção no sentido de nos auxiliarem a compreender a obra para além das camadas visíveis de lixo. A primeira negociação aborda as restrições impostas pela instituição, que giraram em torno dos limites espaciais por onde a obra poderia se alastrar, bem como sobre a não utilização de lixo perecível no espaço expositivo. A segunda está relacionada a primeira pois, apesar de declaradamente não ter havido outras proibições e interferências, foi comentado vagamente sobre um nível de desconforto institucional em relação ao projeto durante sua ocupação do espaço expositivo. Tal desconforto pode ser evidenciado na necessidade da instituição em esclarecer que Avesso não fazia parte da programação planejada pela FIC, tendo sido um projeto selecionado via edital e, portanto, não estando sujeito ao mesmo nível de legitimação das exposições e atividades que estão sob a responsabilidade da instituição e de seus patrocinadores.

O interessante dessa situação é que a instituição - que se diz em busca de maior inclusão e diversidade - exclui de seu aval justamente um projeto que tem na participação e colaboração do público seus eixos centrais. Nessa paisagem, na qual interesses das diferentes instâncias de legitimação da arte estão em disputa, ainda carecemos de definições e termos que deem conta de práticas artísticas como Avesso, que borram as fronteiras entre práticas e conceitos estéticos, políticos e sociais.

Pensando nessas questões, e escapando de análises a respeito da constituição formal das obras, Hal Foster (2015) propôs em seu mais recente livro uma abordagem crítica da produção contemporânea utilizando adjetivos que considera centrais a essas discussões: abjeto, arquivista, mimético, precário e pós-crítico. Para o autor, apesar desses termos orientarem práticas contemporâneas, eles não as regulariam. Não se trataria, portanto, de buscar elencar verdades, mas sim levantar questões que sirvam de guia para reflexões. Em diferentes medidas poderíamos utilizar qualquer um dos adjetivos listados por Foster para nos referirmos à Avesso, mas gostaria de me deter no que os conceitos de abjeto e precário podem fazer emergir (no sentido de emergência proposto pelo autor) naqueles que entraram em contato com a obra, pois a arte abjeta representada pelo imundo, grotesco e até mesmo escatológico presentes no lixo eliminou temporariamente a sensação de assepsia tão própria ao cubo branco. De forma semelhante, percorrendo o ambiente expositivo foi impossível dissociar a precariedade econômica da instituição da precariedade exposta nas salas ocupadas pela ação-instalativa, como consta no detalhe da superior da Imagem 4, onde se lê “esse museu tá sucateado”.

 

Algumas reflexões

Refletindo sobre essas questões e observando as reações à obra, não fica difícil entender o desconforto institucional acima mencionado. Em especial porque a obra deixa antever que a potência de sua recepção pelo público e consequente participação parecem estar intimamente relacionadas à falta de controle por parte tanto da instituição quanto dos artistas. É no instante que surge a brecha que a obra acontece. Nessa experiência de escape registros de ordem estética, cognitiva e crítica tomam forma e diferentes ordens de temporalidade se estabelecem. A compreensão de que a arte pode ativar tais registros de experiência e temporalidades contribui para a reflexão acerca de Avesso.

No caso, a proposta da obra é tensionar o ambiente, visando um alargamento da capacidade perceptiva do público visitante a partir de participação estendida no tempo e sobreposta no espaço. A expectativa inicial dos artistas, plenamente atingida, era de que a sala terminasse preenchida com nomes, marcações de corpos e esculturas de resíduos, criando volumes e percursos pelo espaço e permitindo diferentes formas de relacionar-se com o local. A apropriação pelo público foi acontecendo paulatinamente ao longo do período e se ampliando. O acúmulo das ações preencheu paredes e piso das salas até o limite da altura alcançado pelo público. Houve pessoas subindo nas costas de outras para conseguirem encontrar espaços vazios a serem preenchidos.

Apesar das incontáveis silhuetas de corpos sinalizando uma situação de ausência, de morte, a instituição nunca esteve tão viva. Ainda não sabemos se este projeto terá impactos duradouros na programação da FIC. O que sabemos é que ela virou, ao longo de seis semanas, a Fundação Iberê Camargo do avesso, e isso talvez fosse justamente o que a instituição precisasse para demarcar um novo ciclo.

 

NOTAS

 

[1] A íntegra do edital encontra-se disponível em: <http://bit.ly/2mFaE0E >. Acesso em 24 de maio de 2018.

[2] Andressa Cantergiani é doutoranda em poéticas visuais no PPGAV-UFRGS. Mestre em Performance pelo Programa de Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2008). Vive e trabalha em Porto Alegre/RS | Brasil. Em sua produção recente destacam se: QUASEUMA ILHA, curadoria e Vídeoperformance (Galeria Península, Porto Alegre/RS,2014). ATERRO, performance e exposição individual (Prêmio MINC-Intercâmbio Brasil/Cultura. Galeria Guillherme Cossoul. Lisboa, 2015). JOGOS DE APROXIMAÇÃO, residência artística e exposição coletiva (Galeria Península,Porto Alegre/RS, 2015). Exposição Coletiva Memórias e Identidades( Museu dos Direitos Humanos, Fórum Social Mundial. Porto Alegre, 2016). Residência artística TERRA UNA/MG (2016). Residência artística no Museu Bispo do Rosario de Arte Contemporânea, RJ (2016). Exposição individual TRANCE, Espaço Saracura, RJ (2017). PPPP-PROGRAMA PÚBLICO DE PERFORMANCE PENÍNSULA, concepção e curadoria (Porto Alegre/RS, 2016/2017).

[3] Maurício Ianês é formado pela Faculdade de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado, São Paulo, SP. Seu trabalho questiona as linguagens verbal e artística, suas possibilidades expressivas e limites, suas funções políticas e sociais, muitas vezes propondo a participação do público em suas ações para criar situações de troca onde a linguagem e os seus desdobramentos sociais entram em jogo. Ianês busca referências e influências em filosofia, poesia, crítica social, literatura e música. Ações e performances que buscam questionar a relação entre espectador e artista, tirando o espectador do papel de observador passivo e transformando-o em parte importante da criação da obra são parte importante do trabalho de Ianês. Já participou de importantes exposições nacionais e internacionais, como as 28ª e a 29ª Bienais Internacionais de São Paulo, SP; “Des Choses en Moins, Des Choses en Plus”, Palais de Tokyo, Paris, França; “Avante Brasil”, KIT Kunst im Tunnel, Düsseldorf, Alemanha; “Il Va se Passer Quelque Chose”, Maison de L’Amérique Latine, Paris, França; “Chambres Sourdes”, Parc Culturel de Rentilly, França.

[4] Todas as imagens que acompanham o texto são de autoria da pesquisadora em visita realizada à ação-instalativa no seu último dia de abertura ao público, 03 de junho de 2018.

[5] Justo Werlang é Diretor-Presidente da Fundação Iberê Camargo em Porto Alegre, Rio Grande do Sul desde dezembro de 2016. Empresário e colecionador de arte, tem atuado em diversas instituições culturais. É também o 2º vice-presidente da Fundação Bienal de São Paulo. Participou tanto da criação da Bienal do Mercosul como da Fundação Iberê Camargo, onde foi, em sua fase de implantação, vice-presidente e membro do Conselho de Curadores. Da Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul, da qual é membro vitalício e vice-presidente do Conselho de Administração, foi seu primeiro e sexto presidente e também vice-presidente da 4ª e da 5ª Bienais. Foi, também, membro do Conselho Municipal de Cultura de Porto Alegre e do Conselho do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS).

[6] Bernardo José de Souza é curador, professor e crítico de arte. Foi Coordenador de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria de Cultura de Porto Alegre entre os anos de 2005 e 2013 e Curador do Espaço na 9 Bienal do Mercosul (Porto Alegre, 2013). Desde então, vem desenvolvendo projetos curatoriais para diversas instituições de arte do Brasil e do mundo, dentre os quais a exposição To See What Is Coming, na Despina (Rio de Janeiro, 2014); o 19 Festival de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil (São Paulo, 2015); a exposição A Mão Negativa, no Parque Lage (Rio de Janeiro, 2015); a exposição Através do Espelho, projeto especial da ArtRio (Rio de Janeiro, 2015).Graduado em Comunicação Social na PUCRS e Especialista em Fotografia e Moda pela University of the Arts London, entre 2006 e 2013 foi professor de cursos de graduação e pós-graduação nas universidade PUCRS, ESPMRS, UNISINOS e FEEVALE. Atualmente, integra o corpo docente da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, ministra cursos de curadoria na Despina, no Rio de Janeiro, e colabora com periódicos sobre arte e cultura visual, dentre os quais as revistas Arte Brasileiros, Terremoto, entre outras publicações.

[7] Disponível em: < https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/2018/01/cultura/607080-marcia-tiburi-participa-de-roda-de-conversa-na-fundacao-ibere-camargo.html >. Acesso em 24 de maio de 2018.

[8] Ver nota de rodapé 1.

[9] O outro projeto selecionado pelo edital foi "Náufragos na correnteza do tempo", de Denise Gadelha.

[10] Resultado do edital da  FIC. Disponível em: < https://www.facebook.com/fundacaoiberecamargo/photos/a.562091153856891.1073741826.265790606820282/1884550251610968/?type=3&theater >. Acesso em 24 de maio de 2018.

[11] A 11a edição da Bienal do Mercosul, que costuma atrair tanto público especializado, quanto público geral à Porto Alegre, transcorreu entre os dias 06 de abril e 03 de junho, tenho ocorrido uma grande sobreposição dos períodos da Bienal do Mercosul e de Avesso.

[12] Presskit da exposição contendo imagens em alta, texto e release completo, disponível em: < https://goo.gl/QRBRLN >. Acesso em 24 de maio de 2018.

[13] O termo Novo Institucionalismo data de 2001 e se refere a um modelo de instituição democrática, aberta para o diálogo entre artistas, curadores e público através de projetos de exposição, workshops e desenvolvimento de políticas sociais. Coletividade, transdisciplinaridade e efemeridade são as palavras basilares na definição do Novo Institucionalismo. Rebecca Nesbitt, Carlos Basualdo, Simon Sheikh, Maria Lind, Jennifer Allen e Charles Esche são alguns dos principais curadores e críticos que escreveram a respeito.

 

 

Referências

BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo : Martins, 2009.

BUCHLOH, Benjamin. Conceptual art 1962-1969: form the aesthetics of administration do the critique of institutions. October, Vol. 55 (Winter, 1990), pp. 105-143.

CRIMP, Douglas. Sobre as ruínas do museu / Douglas Crimp; fotos Louise Lawler; tradução Fernando Santos; revisão da tradução Aníbal Mari. - São Paulo : Martins Fontes, 2005, 303p.

FORTUNA, Maria. Crise: Fundação Iberê Camargo ameaça fechar as portas. In: O Globo, 30 de setembro de 2016. Disponível em: < https://blogs.oglobo.globo.com/gente-boa/post/crise-fundacao-ibere-camargo-ameaca-fechar-portas.html >. Acesso e 24 de maio de 2018.

FOSTER, Hal. Bad new days: art, criticism, emergency. Verso: London; New York, 2015.

FRASER, Andrea. O que é crítica institucional? In: Concinnitas, ano 15, volume 02, número 25, dezembro de 2014.

LIND, Maria (org.). Performing the curatorial within and beyond art. Sternberg Press : Berlin. 2012, 167p.

MARTI, Silas. Em crise, Fundação Iberê Camargo abrirá só duas vezes por semana. In: Folha de São Paulo, 24 de agosto de 2016. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/08/1806655-em-crise-fundacao-ibere-camargo-abrira-so-duas-vezes-por-semana.shtml >. Acesso e 24 de maio de 2018.

O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

SHEIKH, Simon. Some notes on institutional critique. In: RAUNIG, G.; RAY, G. (ed). Art and contemporary critical practice. MayFly Book : London, 2009.

 

Currículo

Professora e pesquisadora do Instituto de Artes da UFRGS, Bruna Fetter é Doutora em História, Teoria e Crítica de Arte. Foi pesquisadora visitante na New York University (2014/2015), possibilitado por bolsa Fulbright. Tem atuado como curadora independente e participado em diversas publicações. É membro da ANPAP, da ABCA e da AICA.

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