FELINA
TEXTO CURATORIAL
DA INVISIBILIDADE-MUSEU
Museus, por natureza, constituem espaços de ampla visibilidade pública, sua arquitetura destinando-se à exibição de peças de valor artístico, científico, cultural, bem como à construção e difusão do conhecimento — embora, via de regra, não de toda e qualquer forma de conhecimento. Ao largo da modernidade, desde suas origens na Europa do século 18, museus não apenas foram responsáveis por consolidar o cânone ocidental, mas sobretudo por forjar suas narrativas históricas totalizantes.
Mas e se, ao revés, decidíssemos justamente pensar o museu desde a perspectiva da invisibilidade? Como um mecanismo não mais de display, mas de ocultamento de camadas históricas e dinâmicas institucionais, ou mesmo da própria criação artística? Em “FELINA”, projeto proposto por Andressa Cantergiani a partir do fechamento do MARGS para reformas em 2020, o museu converte-se num espaço opaco, desolado, refratário à esfera pública. E às sucessivas capas de impermeabilidade social decorrentes das obras estruturais no museu, do subsequente lockdown imposto pela pandemia de COVID e da avassaladora enchente de 2024, a artista vai sobrepor ainda outras mais, derivadas dos discursos ideológicos construídos desde o interior de tais instituições, os quais tendem a ignorar narrativas não hegemônicas.
Retroagindo no tempo à Rússia de Catarina, a Grande, e inspirando-se na população do Museu Hermitage, em São Petersburgo, por um bando de gatos — destinados a livrar as obras de arte da constante ameaça dos roedores —, Cantergiani vai desenvolver um projeto de ocupação insidiosa do MARGS, desde seus interstícios, sejam eles físicos ou retóricos, estéticos ou burocráticos, de seus dispositivos de segurança ou mesmo de suas normas de trabalho. Vale dizer, contudo, não se tratar aqui de fazer uma crítica específica a este museu ora “ocupado”, mas antes de investigar a natureza de tais instituições, indistintamente, num plano genealógico.
Cantergiani lança mão de uma estratégia “animista” ao disfarçar-se de felina para deambular pelos telhados, fachadas, galerias, corredores, pontos cegos, escritórios e acervos do Museu, desvelando recintos, rotinas e coreografias públicas ou mesmo institucionais, ao passo em que revela padrões arquitetônicos e hierárquicos, juízos de valor simbólico e estético. Ao vestir a “pele" de um animal, a artista se e nos pergunta da ideia de universalidade investida num museu, e da produção de formas de conhecimento supostamente irrefutáveis, embora, no mais das vezes, construídas unilateralmente sob as bases epistemológicas do Ocidente, e do a priori filosófico sujeito/objeto — ou, dito de outro modo, de uma perspectiva ontológica que entende cultura e natureza como antípodas, cujo o olhar humano se impõe às demais formas de vida.
Ao assumir os traços de uma gata, a artista também está, alegoricamente, falando das muitas ausências narrativas nessas instituições, em suas coleções e seus relatos, a saber: as dos povos ameríndios, dos negros, das mulheres, das comunidades LGBTQIAPN+, dentre tantas outras culturas e formas de vida subsumidas aos discursos univocais propalados por museus ao redor do mundo, os quais costumam negligenciar cosmologias divergentes e desprezar a ampla diversidade de memórias materiais ou simbólicas no planeta — mais um reflexo dos deletérios processos coloniais que seguem em marcha.
Por outro lado, esta invasora felina, este agent provocateur no âmbito institucional, alude metaforicamente à ideia de uma pilhagem às avessas, qual seja, a de saquear o museu para restituir aos povos conquistados seus mais caros artefatos, os quais foram sistematicamente espoliados na esteira do imperialismo europeu. Ou, quem sabe, por outra banda, a coreografia desta felina se destine tão-somente a desconstruir, ou desnaturalizar, as formas de expressão artística arraigadas à normatividade das instituições museológicas.
Bernardo José de Souza
Curador