MONOMENTO
TEXTO CURATORIAL Monomento: o tempo condensado – suspenso entre ruínas e reinvenções –, no intervalo inconstante entre aquilo o que já foi e aquilo o que ainda não é. Algo emerge desse intervalo — não como uma síntese, mas como uma dobra: um ponto de inflexão onde o passado e o futuro colapsam em presença pulsante. Campo vivo de relações; espaço que é fluxo; tempo que se conforma imersão. Um território onde a percepção se alarga, e a linearidade do continuum cede lugar a uma experiência de suspensão — entre o visível e o imaginado, entre o real e o parafactual. Ao mesmo tempo organismo e paisagem, o ambiente se desdobra em configurações que não obedecem a um desenho fixo, mas ao ritmo orgânico de processos que se sobrepõem, desaparecem e emergem de novo. Ao que parece, o que resta quando desistimos de tentar fixar o tempo é um instante que tudo suspende. Nem pausa nem conclusão: o entre-lugar onde a matéria ainda não se decidiu por forma, a intratemporalidade onde o tempo pulsa hesitante; onde o gesto, prestes a ocorrer, já é acontecimento e arqueja em distinção de iminência. Algo emerge dessa suspensão: um monólito, um monumento, uma dobra de espaço e de tempo onde o visível e o latente, onde o que se sonha e o que se toca, convivem sem hierarquia. Nenhuma criação se pretende obra definitiva, mas sinal em trânsito. A escuta precede a forma. A linha antecede o toque que a constrói e o que se oferece ao olhar não é a segurança de um território reconhecível – mas a vertigem de uma paisagem em desdobramento: ambiência viva em sua incerteza, múltipla em seus atravessamentos. A ocorrência do encontro: nunca se tratou de somar linguagens ou justapor discursos – mas de fazer desse instante (frágil, instável, potente) uma prática; de aceitar que toda criação partilhada carrega a possibilidade de se desfazer no próprio gesto tentativo de sua edificação; de admitir que todo contorno é uma ficção provisória – e que é na fricção entre presenças que algo, às vezes, com sorte, por sorte, pode cintilar. Aqui, o tempo compartilhado não buscou capturar o instante; se instaurou como processo e se lançou inadvertidamente no interior de sua duração, como quem aceita naufragar nas águas turvas do ainda-não-dito. O resultado — se é que ainda faz sentido chamá-lo assim — se oferece agora (porque sempre foi agora) como corpo em escuta, como superfície de contágio, como zona de transformação. Cada artista – e aqui este vocábulo é empregado com a mais absoluta precisão – é menos um autor do que um médium: atravessado pelo tempo, contaminado pelo outro, implicado na própria erosão da forma. Estamos em uma zona híbrida, sem dúvida; um terreno pantanoso aonde tudo é provisório, onde tudo é desvio, onde nada se fixa senão o desejo incessante de estar em relação. De fato, nunca se tratou de uma celebração da instabilidade; mas de sua travessia; do reconhecimento de que só no movimento incessante — da matéria, dos afetos, dos sentidos — reside alguma forma de verdade possível. Se existe uma mensagem, talvez seja apenas esta: o que se ergue para durar já nasce em ruína; o que se fecha sobre si mesmo já perdeu a escuta. Entre a memória e o pressentimento, entre o gesto e sua sombra, entre o que se afirma e o que se dissolve, o sensível se acende – e é ali, e apenas ali, que o sensível pode, talvez, ainda aparecer. Não há forma que resista à passagem dos corpos; não há imagem que se mantenha intacta diante do outro. O sensível, a criação, aqui, é (e sempre deveria ser) território de contágio, onde as presenças se misturam, dissolvendo os contornos que lhes emprestam nome e simulam unidade. Não se trata, portanto, de afirmar a importância de qualquer identidade, mas de habitar o entre: esse lugar sem chão onde a arte se faz com a mesma matéria que move o vento e a memória — errância, deslocamento, alteração. Não parece haver contradição: tudo é relação; tudo é risco; não existe obra sem escuta, nem gesto que não carregue a marca dos encontros. Como uma superfície viva, a experiência se reorganiza ao menor sopro, à menor fricção; coisas surgem e desaparecem sem anúncio; assinar é abrir mão de se ver como se pensava ser; marcar é aceitar ser marcado. O tempo, aqui, não é linha — é vertigem; o espaço não é cenário — é travessia; a autoria não é posse — é deriva. Entre o visível e o latente, entre o dito e o silenciado, esta obra não narra: reverbera; não documenta: desloca; não define: propõe brechas. E nessa dinâmica, mesmo quem adentra este campo já não é mais espectador; é também corpo em suspensão, parte de uma tessitura que se desfaz e se refaz a cada olhar, a cada silêncio, a cada desvio. Não se ergueu o monumento; não se enalteceu o monólito; não se afirmou uma origem; não se propôs um destino: apenas se convocou a escuta — e nela, o que pulsa não é a memória do que já foi, mas o pressentimento do que pode vir a ser no instante da recusa em ser moldado pelo acordo: monomento.
André Severo (Curador)
























